A caixa no porão
- Vinicius Fernandes
- 17 de mar. de 2022
- 3 min de leitura
Desci as escadas do porão no escuro mesmo. A minha rinite ameaçou atacar por causa da quantidade pó acumulada naquele cômodo sem janelas na parte de baixo da casa. Da última vez em que tinha estado ali, meu avô ainda era vivo e não parava de contar as histórias de sua juventude e como o período político daquela época tinha sido uma época sombria que se estendeu por vários anos. Vô Benício sempre foi um ativista que lutou contra todo tipo de injustiça. Tenho orgulho de falar que eu sigo carregando o legado que ele iniciou lá atrás, no início da nossa família.
Apertei o interruptor ao pé da escada quando cheguei ao último degrau, e a luz amarelada preencheu o ambiente, revelando pilhas de caixas espalhadas por todos os cantos. Havia uma bicicleta velha caída um pouco mais à frente e, ao lado dela, uma estante de ferro com mais caixas de papelão em suas prateleiras. Era ali que devia estar o que eu procurava. Com cuidado para não pisar em nenhuma das tralhas espalhadas pelo chão, me aproximei e comecei a fuçar nas caixas, mas só encontrei pertences velhos do vô Benício. Meu nariz escorria e ameaçava começar uma crise de espirro a qualquer segundo, mas me segurei. Era muito importante que eu as encontrasse.
Dentro da terceira caixa em que mexi, meus dedos tocaram algo macio. Curioso, puxei o conteúdo e um pequeno saco plástico cheio de pó surgiu diante de meus olhos. Dentro dele, umas três máscaras cirúrgicas brancas — daquelas que os médicos usavam — se espremiam amassadas de qualquer jeito, como se estivessem descansando ali por muito tempo. Um riso abafado escapou-me pelo nariz quando as observei melhor, lembrando das histórias que meu vô contava sobre quando ele era jovem e as pessoas tinham que usá-las no rosto: um vírus mortal tinha surgido na China e se espalhado pelo mundo em questão de poucos meses. Logo, chegou ao Brasil também, forçando as pessoas a entrarem em quarentena. O presidente do país naquela época fez pouco caso da situação, incitando notícias falsas e questionando a gravidade da doença. Uma parcela da população, graças a Deus, ignorou o líder político (que só podia ser maluco!), entretanto, outros reverberaram suas falácias negacionistas e foi aí que tudo começou a sair do controle…
Eu só sei dessas coisas pelas histórias que vô Benício me contava e pelos registros que não desapareceram com o passar dos anos. Mas de uma coisa eu tenho certeza: foi ali que o fim foi decretado, criando o mundo no qual eu nasci — o único que conheci —, dominado pelas inúmeras mutações do vírus que não era “só uma gripezinha”. Um mundo cruel em que lutamos pela sobrevivência todos os dias.
Lamentar pelo passado não mudaria meu presente. Coloquei as máscaras de volta na caixa e tateei mais um pouco, finalmente encontrando o que eu procurava. Peguei a embalagem de munição empoeirada e retirei algumas balas de dentro dela. Saquei o revólver do coldre preso à minha coxa esquerda e o carreguei por completo. Desativei a trava de segurança da arma e subi de volta pela escada do porão. Eu precisava sair para achar comida na cidade.
Mas antes precisaria matar todos os zumbis que encontrasse pelo caminho.

O autor

Vinícius Fernandes é paulista e escreve sobre protagonistas LGBTQIA+. Foi escolhido entre os 5 finalistas do Prêmio PapoMix da Diversidade pelos curadores da premiação, em 2014, com seu romance de estreia, Graham - O continente Lemúria. Vem conquistando um grupo cada vez maior de leitores com suas histórias autênticas, naturais e emocionantes. Acredita que a representatividade na literatura é uma arma importante contra a desigualdade e o preconceito, e seus livros são mais do que simples histórias: são um protesto contra a discriminação de LGBTQIA+s.






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